domingo, 15 de agosto de 2010

A jovem do testamento: o primeiro contato com a morte

*~A jovem do testamento~*


Ele estava intrigado. Apenas 17 anos e já queria fazer um testamento. Era uma bela jovem que lhe chamou a atenção.

- Bom, por que quer fazer um testamento agora, minha cara?

- Porque finalmente descobri o que significa desistir da vida. Porque viver para mim não é como estar em uma sala de vidro à prova de som, gritando alertas e avisos a plenos pulmões, enquanto as pessoas passam calmamente pela rua sem sequer olhar..Nosso planeta está morrendo; o ódio nos rodeia. E no momento que mais precisamos nos unir, estamos mais divididos do que nunca. Já estou morta há muito tempo, eu sou só um boneco, não vivo.

- Não seja tão dramática. Não pode ser tão ruim.

- Mas é. Aos poucos fui abrindo mão da minha vontade e da minha vida. Não tenho mais escolhas, apenas sigo as escolhidas para mim. Não tenho o poder para pausar as atrocidades ao meu redor e o horror diário que é viver nesta realidade. Vivo o medo a cada instante e não tenho mais forças para lutar

- Pois bem. - disse em um tom meio debochado. Achava ser pura brincadeira; um capricho dessa juventude.

- O que quer que eu escreva no seu testamento, minha jovem?

- Há muito vivo uma vida que não é minha. Não tenho sonhos, vontades, ambições, necessidades, nada. Por isso, decidi usar o pouco de livre arbítrio que me resta para escrever esse testamento; estou desistindo da minha vida. Não deixo nada para ninguém pois, embora tenha bens que me pertençam, quero que fiquem onde estão, intocados, imaculados. Peço também que meus desenhos, assim como meus restos mortais, sejam queimados, para que espalhados e, com o tempo, esquecidos. Quero que minhas cinzas sejam atiradas ao vento que percorre os 4 cantos do mundo, para que possa conhecer os lugares que um dia sonhei em conhecer. Quero deixar uma coisa nessa vida: Um aviso de que lutamos por um presente sem pensar em construir um futuro. Nossa arrogância nos afasta cada vez mais da direção que deveríamos seguir. Se nada for preservado, nada sobrará além de recordações amargas. Ainda há tempo, embora seja pouco, de restaurar o que tem sido destruído. Seremos capazes de enxergar antes que não haja nada mais para se ver ou morreremos cegos e amargurados?

- Tem certeza disso?- disse ele meio alerta. Talvez não fosse uma brincadeira. Mas a preocupação durou somente um momento até que seu pensamento se voltasse para o horário. Tinha um compromisso e precisava se apressar.

- Absoluta. É tudo.

  Ele suspirou, vencido.

- Que seja então. Aqui está.- falou enquanto entregava à jovem o pedaço de papel, torcendo para que não fosse sério.

- Obrigada.

E saiu com a mesma calma com que chegou. Estava séria. Deixou o prédio rumo ao parque, onde sentou-se embaixo de uma árvore qualquer para observar um pouco o movimento das pessoas que por ali passavam. Tirou da bolsa um pequeno frasco cheio de cápsulas. Pegou uma. Bastava. Tomou-a sem remorso. Segundos mais tarde já havia partido. O testamento em mãos e uma última lágrima de desespero que percorria sua face.

Uma criança avistou-a deitada ao pé da árvore. Aproximou-se lentamente; achava que ela estava dormindo e foi arrebatada por um sonho ruim. Alisou seus cabelos delicadamente e sorriu. Era criada em meio a demasiada violência para saber diferenciar a morte tranquila de um sono profundo. Sacudiu-a.

- Moça, acorda. Não dorme aqui que é perigoso- Teimou em sacudi-la, mas não houve reação.

Uma pequena lágrima percorreu-lhe o rosto. Enfim percebeu. Abraçou-a sem medo do corpo inerte. Lamentou-se pela jovem desconhecida. E ficou lá por mais alguns momentos, admirando a beleza da jovem e entristecendo-se pela sua morte. Anoiteceu. Tinha que despedir-se da moça. Deixou-a. Ao retornar para o abrigo, contou inocentemente a história para o supervisor, que logo foi até a delegacia e informou à policia do ocorrido. A criança que, também vivia a dor e os horrores do mundo diariamente, sentou-se pensativa. Nunca mais seria a mesma.

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